Logo após o conflito ocorrido em dezembro de 2007 na aldeia Buriti Comprido, o Antropólogo Odair Giraldin escreveu a Carta abaixo ao presidente da FUNAI, na época Sr. Márcio Meira
*Odair
Giraldin
Aspecto da aldeia Buriti Comprido dois anos após o conflito. (foto: Maurício Wilke. Jul. de 2009)
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Desde
o início de meu doutorado, em 1994, venho estudando o povo Apinajé. Visitei-os
em 1995 pela primeira vez, tendo feito trabalho de campo intensivo nos anos de
1996 a 1999.
Quando cheguei à área pela primeira vez, estava ocorrendo o final do processo de retirada dos últimos posseiros, dez anos depois da demarcação. Este processo somente foi concluído por volta de 1997.
Neste período, existiam as aldeias São José, Patizal e Cocalinho, na parte oeste da T.I. Apinajé, e as aldeias Mariazinha, Riachinho, Bonito e Botica, na porção leste, próximo do rio Tocantins.
A parte Norte e Leste do território eram (e ainda são) as fronteiras mais vulneráveis daquela T.I. Pelo Leste, os pescadores e caçadores invadem o território pelo Rio Tocantins; pelo Norte, caçadores e madeireiros invadem para caçar e retirar madeira nas matas ciliares nas margens do Rio Tocantins e dos Ribeirões Pekôb São Martins e Botica. Além de retirarem também o bacuri e a fava-d´anta, nesta parte Norte os fazendeiros dos municípios de Maurilândia e São Bento invadem o território com rebanhos de gado.
Por volta de 1997, com o fim da retirada dos últimos posseiros a AER- Administração Regional de Araguaína montou dois Postos de Vigilância na região Norte: Veredão, nas margens da Rodovia que liga São Bento a Araguatins, na margem Sul do Ribeirão São Martins, e no Pontal, próximo à cidade de Maurilândia. Havia à disposição dos postos apenas um funcionário, equipado com uma viatura Toyota e muita disposição.
Quando cheguei à área pela primeira vez, estava ocorrendo o final do processo de retirada dos últimos posseiros, dez anos depois da demarcação. Este processo somente foi concluído por volta de 1997.
Neste período, existiam as aldeias São José, Patizal e Cocalinho, na parte oeste da T.I. Apinajé, e as aldeias Mariazinha, Riachinho, Bonito e Botica, na porção leste, próximo do rio Tocantins.
A parte Norte e Leste do território eram (e ainda são) as fronteiras mais vulneráveis daquela T.I. Pelo Leste, os pescadores e caçadores invadem o território pelo Rio Tocantins; pelo Norte, caçadores e madeireiros invadem para caçar e retirar madeira nas matas ciliares nas margens do Rio Tocantins e dos Ribeirões Pekôb São Martins e Botica. Além de retirarem também o bacuri e a fava-d´anta, nesta parte Norte os fazendeiros dos municípios de Maurilândia e São Bento invadem o território com rebanhos de gado.
Por volta de 1997, com o fim da retirada dos últimos posseiros a AER- Administração Regional de Araguaína montou dois Postos de Vigilância na região Norte: Veredão, nas margens da Rodovia que liga São Bento a Araguatins, na margem Sul do Ribeirão São Martins, e no Pontal, próximo à cidade de Maurilândia. Havia à disposição dos postos apenas um funcionário, equipado com uma viatura Toyota e muita disposição.
Posto de Vigilância Pontal (desativado pela FUNAI) localizado na divisa Norte da T.I. Apinajé. (foto: Maurício Wilke. Jul. 2009)
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Entre os moradores do Gato Preto que foram para Bacaba, estava a menina Irepxi, também conhecida como Maria Barbosa. No processo de demarcação, ela liderou seu grupo familiar para reocupar a região da antiga Cocal e fundaram a aldeia Cocalinho, próximo ao Ribeirão São Bento, nas proximidades do povoado de Lagoa de São Bento, hoje município de São Bento do Tocantins. Nos conflitos que se seguiram à luta pelo território, um fazendeiro de Araguatins, chamado João de Deus com um grupo de homens armados, invadiram a aldeia Cocalinho e, sob ameaça de armas de fogo, expulsaram seus moradores que foram jogados às margens da rodovia BR 230 (transamazônica) próximo à aldeia São José. No mesmo processo de demarcação, um genro de Irepxi, Valdemar, foi morto pela Polícia militar de Goiás dentro da Delegacia de Tocantinópolis, sendo que quatro outros Apinajé, Romão, Vicente, Sotero e Clementino ficaram feridos à bala.
Com a demarcação concluída, o grupo dos descendentes da antiga aldeia Cocal (Maria Barbosa, Sebastião, Domingos, Maricota e Joanita), voltaram para a região e reergueram a aldeia Cocalinho. Por desavenças internas, uma parte do grupo retornou para São José, permanecendo na aldeia Cocalinho apenas Sebastião e Domingos.
No ano 2002 a família da falecida Irepxi, Maria Barbosa, liderada por ela e por Pẽpxà (Augustinho) fundou a aldeia Buriti Comprido, nas margens do Ribeirão São Martinho e retornou para seu antigo território. Lá Augustinho e Maria Barbosa faleceram. Ela foi sepultada no cemitério da aldeia Buriti Comprido.
As relações dos Apinajé
com a população regional sempre foi assimétrica. Os regionais não convivem
respeitosamente com os indígenas. Presenciei uma cena em que estavam homens da
aldeia Cocalinho passando pela casa de um morador, Sr. Nezinho, então vivendo
dentro da área e aguardando indenização para realizar a desocupação. Este
perguntou a um indígena qual era o nome da madeira da qual se fazia o arco. O
rapaz, em sua língua, perguntou a um companheiro como se chamava aquela madeira
em português. Sr. Nezinho interrompeu o
diálogo dizendo: “Eh, cabloco! Fale
língua de gente!!!”.
Este Sr. Nezinho é pai
de dois rapazes que entraram na aldeia Buriti Comprido no dia 15 de dezembro de
2007. Um deles, Roni, sobreviveu dirigindo o trator. Outro, Silveira, morreu
na aldeia.
Apesar das relações
assimétricas, a população Apinajé jamais em sua história de contato havia
matado algum kupẽ (não-indígena) dentro de suas aldeias. Consultei a
documentação histórica desde o século XVIII, que tive a oportunidade de estudar
durante o meu doutorado, nunca apresentaram ações dos Apinajé matando brancos.
Uma única memória da população refere-se à morte de capangas de um dos coronéis
da região que se envolveram em disputas políticas pelo poder na então Boa Vista
(atual Tocantinópolis). Memórias de tropeiros da região, que faziam transporte
de mercadorias entre Tocantinópolis e Araguatins, nas décadas de 1930 até anos
1960, dão conta das relações amigáveis entre eles e os Apinajé, pois a estrada
entre as duas localidades passava pela aldeia Botica.
Pois bem, mas no dia 15
de dezembro de 2007 aconteceu o primeiro episódio, que passo a descrever.
Estive na aldeia São José entre os dias 18 e 21 de dezembro de 2007 prestando
solidariedade e tentando entender o que havia ocorrido.
Trevo da BR 230 próximo à aldeia Buriti Comprido; T.I. Apinajé à direita. (foto: Antonio Veríssimo. Abr. 2015)
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Quando da campanha para
a eleição do atual prefeito, Sr. Messias, à prefeitura de Cachoeirinha, ele
teria prometido aos Apinajé da aldeia Cocalinho que, se caso fosse eleito,
mandaria cascalhar a estrada, faria uma ponte no Ribeirão dos Caboclos e
levaria energia elétrica até a aldeia.
Após a posse, as promessas não foram
cumpridas. Atendendo pedidos dos indígenas a prefeitura mandou à aldeia um
trator com carreta para transportar folhas de babaçu para serem utilizadas na
cobertura de casas. Os Apinajé despacharam os dois trabalhadores que estavam
com o trator e retiveram a máquina na aldeia como uma forma de forçar a
negociação para o cumprimento das promessas feitas pelo prefeito.
Depois de quinze dias
foi que um funcionário da prefeitura foi até a aldeia Cocalinho para negociar.
O cacique estava em Tocantinópolis numa reunião sobre Saúde. O vice-cacique
recebeu o funcionário, mas não pode decidir nada.
Na quarta-feira, dia 12/12/2007,
o prefeito esteve na aldeia Cocalinho juntamente com vários homens, alguns
deles armados; como foi o caso de um deles, chamado Silveira. Na aldeia estavam
apenas algumas mulheres e crianças, pois a maioria dos homens e mulheres estava
coletando bacuri ou pescando. O cacique foi pressionado a decidir sozinho pela
devolução do trator, porém afirmou que precisava da presença de todos da aldeia
para poderem decidir, uma vez que toda decisão é fruto do consenso coletivo e
não da vontade do indivíduo que esta na chefia. Eles se reuniram no prédio da
escola e esperaram pela volta dos que estavam fora da aldeia. Como estava
demorando, o prefeito saiu sem resolver nada, nem marcando nova data para outra
reunião.
Na sexta-feira um
morador de Cachoeirinha, de nome Jackson, teria chegado na aldeia e avisado os
moradores que o prefeito estava preparando um ataque na aldeia para pegar o
trator e que ele estava ali para lutar ao lado dos Panhi. Estes não acreditaram
nas palavras de Jackson e pediram que ele fosse embora.
Para comemorar o
encerramento do ano letivo e o início da construção da nova Escola da nova
aldeia Buriti Comprido, no sábado, dia 15/12, os funcionários (professores e agentes
de saúde) cotizaram o valor de R$30,00 cada um e compraram carne e
refrigerantes. Convidaram amigos, conhecidos e políticos da cidade de São
Bento, como o Vereador Toti para a Celebração. Convidaram também seus
familiares e parentes da aldeia Cocalinho para a festa e uma partida de
futebol. Estes fretaram uma camioneta de São Bento para leva-los até Buriti
Comprido. Mas alguns moradores de Cocalinho levaram o trator, sem a carreta.
Pela manhã, o indígena
Alexandre, animou a festa com cantos de maracá no pátio. Logo depois do almoço,
diversos convidados kupẽ se retiraram, incluindo o Vereador Toti.
Por volta de 15h00
estavam os jogadores no centro do campo “casando” dinheiro para iniciar o jogo,
pois iriam fazer uma partida apostada. Nisso entrou um carro na aldeia e se
dirigiu ao trator. As crianças correram em direção ao carro, como de costume.
Viram então que os homens estavam encapuzados e elas começaram a gritar: “bandido, é bandido!!!. Alguns traziam a
cabeça ocultada pelo uso de camisetas enroladas, outros usam capuzes pretos. Um
dos ocupantes do carro desceu e correu em direção ao trator. Os demais desceram
e começaram a disparar tiros para o alto. Quando foi dada a partida no trator,
alguns homens correram para tentar conter o mesmo. Este deu partida e começou a
disparar um revolver em direção aos homens, atingido um deles de raspão no
braço.
Se a intenção dos
ocupantes do veículo era que todos fugissem com os disparos, isso não
aconteceu. Crianças correram para o mato, mas homens e mulheres enfrentaram os
atacantes. Num momento em que a munição de um terminou, correram até ele e o
dominaram. Enquanto isso os demais ocupantes do automóvel voltaram para o
carro, mas foram alcançados pelas pessoas e impedidos de atirar, acabaram
dominados também. Com os quatro homens foram encontrados cinco armas; três revólveres,
uma cartucheira 20 e um rifle calibre 22.
Após o tiroteio, (e
reação da comunidade) quando os capuzes foram retirados, descobriu-se que eram todas
pessoas conhecidas dos Apinajé. Alfredo e Gutierrez eram funcionários da
prefeitura de Cachoeirinha; Jonas era secretário da mesma prefeitura. O quarto
homem era Silveira, irmão de Roni, que conseguiu escapar com o trator, e ambos
filhos do Sr. Nezinho, antigo posseiro da área Apinajé e morador na cidade de
São Bento. Roni e Silveira são irmãos da enfermeira que trabalhava ha alguns
anos na aldeia Patizal.
Diversos fatores contribuíram para a
ocorrência. Primeiro foi a atitude do prefeito em não cumprir o prometido.
Posso dizer que, pelas palavras que ouvi deles nestes dias que estive na aldeia
São José, os Apinajé entendem que o prefeito exerce uma liderança que é
interpretada pelo signo da chefia da aldeia. Se um cacique se propõe a fazer
algo pela comunidade, ele deve cumprir o que falou. Ele deve ser generoso a
ponto de distribuir bens para atender os interesses da comunidade. Os Apinajé
esperam isso dos Prefeitos. Como o mandatário de Cachoeirinha não cumpria o que
prometeu, eles então partiram para a pressão que é comum na região, o
aprisionamento de algum bem material para forçar a negociação e a solução.
Invasões na T.I. Apinajé na região do Pontal (foto; Maurício Wilke. Jul. de 2009)
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Faltou a FUNAI cumprir
dois quesitos fundamentais. Primeiro fazer a vigilância do território. Com a
desativação dos Postos de Vigilância do Veredão e Pontal, o território ficou
vulnerável e os kupẽ não mais sentiram dificuldade alguma em adentrar o
território. Segundo porque a FUNAI deveria ter intermediado eficazmente o
conflito e não ter deixado que o próprio prefeito ou seus funcionários fosse
até a aldeia, que sem conhecerem minimamente as normas culturais dos Apinajé,
não teriam capacidade para conduzir com habilidade uma negociação.
Com este episódio os Apinajé
estão amedrontados e se sentindo ameaçados. Com a remoção daquela população
para a aldeia São José, eles vivem uma sensação de desterro. São refugiados
dentro de seu próprio território. Sem proteção não terão condições de voltarem
para suas casas. Viver na aldeia São José poderá gerar problemas sérios, pois
lá não possuem roças e terão que viver de favores recebendo cestas bá sicas durante um ano.
No dia 08 de dezembro
devido a brigas durante uma festa, houve, na aldeia Botica, a morte de um kupẽ
que era casado com uma Apinajé. Isso colocou a população das aldeias do PIN
Mariazinha em situação de insegurança também e dificuldade no relacionamento
com as cidades de Tocantinópolis e Maurilândia.
Bacuri é uma das espécies de frutas encontradas na região das aldeias Cocalinho e Buriti Comprido. (foto: Antonio Veríssimo. dez. de 2012) |
Dessa forma, penso que a
FUNAI precisa cumprir seu papel de proteção ao território reativando os Postos
do Veredão e Pontal e criando outro no entroncamento de Luzinópolis, outro no
entroncamento da Prata, outro na entrada da T.I. no sentido Tocantinópolis a
Maurilândia e outro na entrada da T.I., no sentido Maurilândia a Tocantinópolis,
equipando-os adequadamente com veículos, funcionários e comunicação. Somente
assim eles poderão voltar a ter tranqüilidade para reocuparem suas antigas
aldeias e terem seu território preservado.
Esta medida se faz
urgente uma vez que a aldeia Cocalinho teve suas casas incendiadas pelos
não-indígenas em vingança. A reocupação desta região pelos Apinajé somente será
possível com a presença diuturna de segurança armada. Vale lembrar que a região
do Cocalinho é cobiçada pelos não-índios pela grande quantidade de bacuri
existente na região e pela fertilidade de suas terras.
Ao fazer este relato e estas sugestões acredito estar cumprindo com meu papel de antropólogo auxiliando a FUNAI e aos Apinajé para tentar solucionar esta situação grave pela qual passam aquele povo atualmente.
Ao fazer este relato e estas sugestões acredito estar cumprindo com meu papel de antropólogo auxiliando a FUNAI e aos Apinajé para tentar solucionar esta situação grave pela qual passam aquele povo atualmente.
* Doutor em Antropologia (Universidade de Campinas-UNICAMP)
Coordenador do Núcleo de Estudos e Assuntos
Indígenas – NEAI
Prof. da Universidade Federal do Tocantins –
UFT
Dezembro de 2007.
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