NOTA TÉCNICA
O
Ministério Público Federal, Procuradoria da República no Estado do Tocantins,
pelo Ofício da Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Índios e
Comunidades Tradicionais, expede a presente NOTA TÉCNICA em relação ao Projeto
de Lei nº 194/2017, em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado do
Tocantins, de autoria do Deputado José Bonifácio, que visa alterar a Lei
Estadual nº 1.959/2008, que dispõe sobre a proibição de queima, derrubada e do
uso predatório das palmeiras do coco de babaçu. A Lei Estadual nº 1.959/2008
tem a seguinte redação:
Lei nº 1.959 de
14/08/2008
Publicado no DOE
em 15 agosto de 2008
Dispõe sobre a
proibição da queima, derrubada e do uso predatório das palmeiras do coco de
babaçu e adota outras providências.
O GOVERNADOR DO
ESTADO DO TOCANTINS
Faço saber que a
ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO TOCANTINS decreta e eu sanciono a seguinte lei:
Art.
1º São proibidos a queima do coco babaçu, inteiro ou in natura, para qualquer
finalidade, a derrubada e o uso predatório de suas palmeiras no Estado do
Tocantins, vedadas ainda, as práticas que possam prejudicar a produtividade ou
a vida do babaçu.
§
1º É permitida a derrubada de palmeiras de coco babaçu no Estado do Tocantins:
I
- se necessária a execução de obras, projetos ou serviços de utilidade pública
ou de interesse social, assim declarado pelo Poder Público, sem prejuízo do
licenciamento junto ao órgão ambiental competente;
II
- com o objetivo de estimular a reprodução das palmeiras, aumentar a produção
do coco ou facilitar a sua coleta;
III
- nos casos de raleamento, obedecido o disposto no art. 3º desta lei.
§
2º Para fins do disposto no inciso I do § 1º deste artigo, o órgão licenciador
deve indicar as medidas de compensação ambiental a serem adotadas pelo responsável.
§
3º O disposto neste artigo não se aplica ao carvão produzido da casca do coco
de babaçu em caieira, pelas quebradeiras de coco e comunidades tradicionais.
Art.
2º As matas nativas constituídas por palmeiras de coco de babaçu, em terras
públicas ou devolutas são de livre uso e acesso das populações
agroextrativistas, desde que as explorem em regime de economia familiar e
comunitário, conforme os costumes de cada região.
Parágrafo
único. Em terras privadas, a exploração é condicionada a celebração de termo de
acordo entre as associações regularmente constituídas de quebradeiras de coco
de babaçu ou de comunidades tradicionais e os respectivos proprietários.
Art.
3º É permitido o trabalho de raleamento nas áreas de incidência de palmeiras de
coco de babaçu, desde que obedecidos os seguintes critérios:
I
- sacrifício prioritário de palmeiras fêmeas senis;
II
- manutenção de, no mínimo, oitenta palmeiras produtivas e oitenta palmeiras
jovens em cada hectare desmatado, obedecendo ao espaçamento máximo 10m x 10m;
III
- utilização de meios adequados de desbaste, que não comprometam a vegetação
remanescente;
IV
- vise melhorar a produtividade e facilitar o acesso aos babaçuais, sendo
permitido o manejo da vegetação associada.
Parágrafo
único. O trabalho de raleamento é condicionado à autorização do órgão ambiental
competente.
Art.
4º Compete ao Instituto Natureza do Tocantins - NATURATINS e à Companhia
Independente de Polícia Ambiental - CIPAMA a execução e fiscalização do
cumprimento desta lei, podendo para tanto, celebrar convênios com órgãos
federais, municipais e com a sociedade civil organizada.
Art.
5º O infrator desta lei, independentemente das sanções civis, penais e
administrativas previstas e da obrigação de reparação do dano causado, deve
incorrer no pagamento de multa:
I
- no valor de R$ 100,00 a R$ 500,00 por unidade, quilo, metro de carvão vegetal
ou metro cúbico, para aquele que receber ou adquirir, vender ou expor à venda,
transportar ou que tenha, para fins comerciais ou industriais, carvão de coco
de babaçu inteiro ou in natura;
II
- no valor de R$ 1.000,00 a R$ 5.000,00, para aquele que conduzir palmito
extraído de palmeira de coco de babaçu, ressalvada as condições mencionadas no
§ 1º do art. 1º desta lei.
Parágrafo
único. A inobservância das demais infrações não tipificadas nesta lei, sujeita
ao infrator às sanções previstas na legislação ambiental em vigor, em especial
as previstas na Lei Estadual nº 771, de
7
de julho de 1995, e Decreto Federal nº 3.179, de 21 de setembro de 1999.
Art.
6º O produto da arrecadação da multa instituída nesta lei é recolhido ao Fundo
Estadual do Meio
Ambiente
e revertido para a recuperação de áreas de babaçuais e para o desenvolvimento
de políticas públicas em favor das comunidades de quebradeiras de coco de babaçu
e das comunidades tradicionais.
Art.
7º O Poder Executivo e suas autarquias ficam proibidos de conferir benefícios,
sob qualquer instrumento, aos infratores desta lei, devendo constar estes em
relação organizada pelo órgão ambiental competente.
Art.
8º Com o propósito de estimular a instalação de unidades industriais que visem
o aproveitamento integral do coco de babaçu, é proibida a comercialização
interestadual do coco de babaçu inteiro ou in natura.
Art.
9º A quebra do coco de babaçu em duas ou mais partes, processadas em qualquer
ambiente, sem o aproveitamento do mesocarpo e da amêndoa, não justifica a
carbonização das referidas partes, que assim, não são consideradas cascas para
este efeito.
Art.
10. Ao Poder Executivo incumbe a elaboração de normas complementares que julgar
necessárias ao fiel cumprimento desta lei.
Art.
11. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art.
12. É revogada a Lei nº 1.366, de 31 de dezembro de 2002.
Palácio Araguaia,
em Palmas, aos 14 dias do mês de agosto de 2008; 187º da Independência, 120º da
República e 20º do Estado.
MARCELO DE
CARVALHO MIRANDA
Governador do
Estado
MARY MARQUES DE
LIMA
Secretária-Chefe
da Casa Civil
Já
o projeto apresentado atinge o cerne da regulamentação, que é a salvaguarda da matéria-prima
utilizada pelas quebradeiras, com a seguinte redação:
PROJETO DE LEI Nº
194/2017
Altera
a Lei nº 1.959, de 14 de agosto de 2008, que dispõe sobre a proibição da
queima, derrubada e uso predatório das palmeiras do coco-babaçu e adota outras
providências.
A
Assembleia Legislativa do Estado do Tocantins decreta:
Art.
1º. Fica alterado o art. 1º da Lei nº 1.959, de 14 de agosto de 2008, que passa
a vigorar com a seguinte redação:
Art.
1º. São proibidos a derrubada e o uso predatório das palmeiras de babaçu no
Estado do Tocantins, vedadas, ainda, as práticas que possam prejudicar a
produtividade ou a vida das palmeiras do babaçu.
Art.
2º. São revogados os artigos. 8º e 9º da Lei nº 1.959, de 14 de agosto de 2008.
Art.
3º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Justificativa:
A
presente proposta justifica-se pelo fato de que o coco babaçu vem apodrecendo debaixo
das palmeiras em virtude do baixo preço da amêndoa pago pelos compradores. Além
disso, a prática da queima vem sendo feita ilegalmente para a fabricação de
carvão.
Sala das Sessões,
em 19 de Outubro de 2017
JOSÉ BONIFÁCIO
Deputado Estadual
Após
tomar conhecimento da existência do referido projeto de lei, o Movimento
Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) procurou o Ministério
Público Federal no dia 06.12.2017, manifestando sua preocupação com o referido
projeto, alertando para as seguintes circunstâncias:
1-
A partir do momento que forem permitidas a comercialização e a queima do coco
babaçu inteiro, os proprietários de imóveis rurais e outros intermediários,
notadamente vendedores de carvão, coletarão os cocos inteiros e não os
disponibilizarão para as quebradeiras;
2-
Ao contrário do ocorrido quando da aprovação da lei original, e também do que determina
a Convenção 169 da OIT, as quebradeiras não foram ouvidas em momento algum
sobre o referido Projeto de Lei, tendo dele tomado conhecimento por acaso;
3-
O artigo 112 da Constituição do Estado do Tocantins estabelece que “Art.
112. É obrigatória a preservação das áreas de vegetação natural e de produção
de frutos nativos, especialmente de babaçu, buriti, pequi, jatobá, araticum e
de outros indispensáveis à sobrevivência da fauna e das populações que deles se
utilizam.”
Veja-se
que o objetivo da preservação é garantir a sobrevivência das populações que
deles se utilizam. Pois bem. Trazida a questão ao Ministério Público Federal,
faço as seguintes considerações:
1-
Inicialmente, afirmo a atribuição do Ministério Público Federal de atuar em
defesa das quebradeiras de coco babaçu, atribuição esta pacificada pelo
Enunciado nº 19 da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que trata de
Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, nos seguintes termos: ENUNCIADO
nº 19: “O MPF, dentre outros
legitimados, tem atribuição para atuar judicial e extrajudicialmente em casos
envolvendo direitos de quilombolas e demais comunidades tradicionais, sendo a
competência jurisdicional da justiça federal. Tal atribuição se funda no artigo
6º, inciso VII, alínea “c”, e artigo 5º, inciso III, alínea “c”, da Lei
Complementar nº 75/93, no fato de que a tutela de tais interesses corresponde à
proteção e promoção do patrimônio cultural nacional (artigos 215 e 216 da
Constituição); envolve políticas públicas federais, bem como o cumprimento dos
tratados internacionais de direitos humanos, notadamente da Convenção nº 169 da
OIT”.
2-
Também não há dúvida quanto ao fato de as quebradeiras de coco babaçu serem
reconhecidas como comunidades tradicionais, pela sua própria autoafirmação, ainda
corroborada por sua participação no Conselho Nacional de Povos e Comunidades
Tradicionais, instituído pelo Decreto nº 8.750/2016.
3-
Firmadas essas premissas, passo à análise do projeto questionado, ciente de que
não foi ainda aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Tocantins, não
possuindo portanto implicação concreta na vida das quebradeiras de coco babaçu.
Sem querer interferir no âmbito de matéria interna
corporis da Casa de Leis,
cumpre-me externar a posição do Ministério Público Federal, Procuradoria da
República no Estado do Tocantins, em relação ao Projeto de Lei nº 194/2017:
3.1-
Tenho que o Projeto já nasce eivado de ilegalidade, uma vez não observado o artigo
6º da Convenção 169 da OIT, internalizada no Direito brasileiro pelo Decreto nº
5051/2004, que prevê:
1.
Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a)
consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e,
particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que
sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de
afetá-los diretamente;
Uma
vez que o Projeto visa estabelecer medida legislativa suscetível de afetar diretamente
as quebradeiras de coco babaçu, não poderia sequer ser proposto sem consultar-lhes
previamente.
3.2-
A proposta apresentada padece de inconstitucionalidade flagrante. Com efeito, a
Constituição Federal criou um sistema de proteção ao patrimônio cultural brasileiro,
e prevê em seu artigo 216:
Art.
216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I
- as formas de expressão;
II
- os modos de criar, fazer e viver;
Já
o parágrafo primeiro desse mesmo artigo determina:
§
1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
Ora,
se as formas de criar, fazer e viver (coleta, quebra, beneficiamento, utilização
do coco babaçu) dos grupos formadores da sociedade brasileira (as quebradeiras
de coco babaçu) constituem patrimônio cultural brasileiro e é determinado ao
Poder Público sua proteção e preservação, não pode o Estado do Tocantins
instituir lei que ameace de morte a existência da comunidade tradicional. Nesse
sentido, o Ministério Público Federal aguarda que o Projeto de Lei nº 194/2017
seja definitivamente arquivado na Assembleia Legislativa do Estado do
Tocantins.
Palmas
- TO, 08 de dezembro de 2017.
Álvaro
Lotufo Manzano
Procurador da República
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