Águas de março
”Água sagrada e bendita, dai-me licença e inspiração,
preciso escrever uma canção, ou quem sabe uma oração, para exaltar tua
valiosa existência, desde o momento da criação”
Nesses dias
que antecedem a realização do 8º Fórum Mundial da Água - FMA, que será
realizado no período de 18 a 23 de março de 2018 em Brasília – DF, alguns
veículos de comunicação passaram a divulgar reportagens e entrevistas com
especialistas e gestores de órgãos públicos responsáveis pela implementação das
políticas dos recursos hídricos. Em suas falas esses gestores estão orientando à
população para o uso moderado e racional para não faltar água. Algumas rádios ainda
estão veiculando em suas programações campanhas e informes publicitários recomendando
às populações urbanas e rurais para que economizem e não desperdicem água. O
discurso falacioso de uso racional da água ecoa também nas tribunas da Câmara e
Senado Federal, aonde alguns parlamentares da bancada ruralista se contradizem
falando de preservação de mananciais e conservação da água, mas por outro lado atuam
contra a legislação ambiental. Esses
mesmo parlamentares da bancada ruralista votaram pela afrouxamento do Código
Florestal e alguns são acusados de desmatar e envenenar áreas de nascentes e
mananciais hídricos.
Não basta a população
mais empobrecida pagar um alto preço pelos serviços de tratamento e distribuição de
água para suprir suas necessidades básicas; ainda são obrigados fazer
sacrifícios e sofrer cortes no fornecimento de água. Já os empresários do
agronegócio usam a vontade a água para irrigar suas plantações, não se
preocupam se vai faltar água ou não nas torneiras, já que têm poder aquisitivo
para comprar água mineral para abastecer suas ganâncias.
Com certeza
os representantes de empresas, governos e instituições financeiras participantes
do 8º Fórum Mundial da Água - FMA irão destacar a importância da água para os seres vivos
do Planeta Terra, afirmando de forma repetitiva que a água é elemento essencial
à vida e um direito de todos. Porém sabemos que isso não é verdade pois
atualmente a maioria das populações sofrem com falta d’água para suas atividades
cotidiana e produção familiar, muitas comunidades não tem acesso à água potável
para beber. Nesses grandes eventos que tratam de debater esses sérios problemas
ambientais, sanitários e de escassez de água, os governantes sempre recorrem a
esses discursos demagógicos e hipócritas para iludir a população. Algumas
autoridades com poder de decisão falam muito, no final, decide se pouco e na
prática implementa se quase nada.
O mais provável é que os 30 mil participantes do
8º Fórum Mundial da Água - FMA irão
ouvir da classe empresarial a retórica mercantilista destacando a importância
comercial da água. Para as grandes empresas que estarão em peso presentes no 8º
Fórum Mundial da Água, os recursos hídricos são produtos e mercadorias
estratégicas para sustentar a especulação financeira e garantia de lucros sem
limites. Dessa forma, faltar água nas torneiras compensa para esses empresários.
Nos últimos
30 anos as demandas pela água triplicaram, e os conflitos de interesses também.
Atualmente a água é um dos recursos da natureza mais demandados especialmente
para usos na agricultura industrial, na mineração e produção de energia
elétrica. No estado do Tocantins a instalação de bombas para captação de água
dos rios Javaés e Formoso para irrigar plantações está esgotando aqueles rios
afluentes do Araguaia. O ilícito gerou Ação Judicial do MPF-TO contra as empresas
que estão sendo responsabilizadas na Justiça. No Norte de Tocantins, o povo
Apinajé sofre com desmatamento implantados com autorização emitidas de forma
monocrática pelo NATURATINS, sem a participação da FUNAI, e sem consultas a
comunidade. Sequer foram realizados Estudos de Impacto Ambiental ou apresentado
qualquer Relatório que permita avaliação dos impactos do empreendimento sobre
as nascentes e mananciais de água da TI. Apinajé.
Se nada for feito pelas autoridades e
governos, doravante os conflitos pela água irão aumentar no Brasil. As recorrentes
violações de direitos humanos que acontecem no contexto desses conflitos continuarão
cada vez mais violentos, ofuscando a imagem do Brasil perante a comunidade
internacional. A Convenção 169 da OIT e outros tratados internacionais
ratificados pelo Brasil, estão sendo desrespeitados e jogados definitivamente na
lixeira da história.
Em razão do
relevante valor da água para os seres humanos e demais espécies vivas, nossos
pequenos, médios e grandes rios deveriam ser mais respeitados e cuidados.
Entretanto a cada momento a sociedade assiste paralisada esses mananciais e
nascentes em todos os biomas do Brasil, especialmente no Cerrado e na Amazônia,
sendo cada vez mais agredidos, degradados e mortos pela classe empresarial do
agronegócio, pela mineração e setor elétrico. É deprimente ver nossos rios agonizando
e sendo transformados em lixeiras. A grande maioria das cidades ribeirinhas
lançam seus esgotos diretamente no leitos rios que banham. Não podemos esquecer
a tragédia ambiental de Mariana - MG, provocada pela mineração. O rio Tietê que
corta a capital paulista continua sendo um vergonhoso exemplo que a sociedade,
governos e imprensa olham, mas fingem não ver.
A gestão e
uso da água não priorizar as necessidades básicos e nobre dos humanos e das
outras espécies vivas, ou seja tomar banho, beber, lavar roupas, molhar as
lavouras, navegar, pescar entre outros usos. A pesar dessa situação de extrema
gravidade, os governos nunca implementam projetos sérios para recuperação e
revitalização dos mananciais hídricos. A situação do Rio São Francisco é um
clássico exemplo dessa falta de compromisso e responsabilidade dos governantes
com nosso rios. Contrariando as expectativas das organizações da sociedade
civil, nos últimos anos o governo Temer tem avançando nessa agenda retrógrada e
neoliberal, de agressões e violências contra os direitos humanos; incluindo nosso
direito ambiental e acesso à água. Somente agora no clima do 8º Fórum Mundial
da Água – FMA, o presidente Michel Temer de maneira pretensiosa e oportunista,
aproveitando da cobertura da grande mídia, anda acenando com algumas medidas (política) em defesa das águas. No entanto sabemos que isso não passa de
um jogo de faz de conta.
A pesar de
serem os mais vulneráveis, ameaçados e prejudicados pelos problemas da
degradação de nascentes, poluição dos rios, escassez de água potável para
consumo diário, doenças, fome e sede, as populações urbanas da periferia, os
ribeirinhos, os povos indígenas e povos tradicionais, serão excluídos e não
terão espaço nos debates e instancias de tomadas de decisão do 8º Fórum Mundial
da Água - FMA. O evento será dominado e controlado por empresas e/ou
corporações vinculadas à governos que tratarão sempre de impor e defender a
privatização dos rios, lagos, aquíferos e outros mananciais de água.
Dessa forma
as organizações sociais, trabalhadores (as) do campo e da cidade estão
organizando o Fórum Alternativa Mundial da Água - FAMA. De acordo com a CPT, o objetivo do FAMA é questionar a
privatização da água, do saneamento básico, dos recursos naturais e a
exploração deles por grandes empresas. Além disso, visa denunciar a
ilegitimidade do Conselho Mundial da Água.
O valor
espiritual e religioso da água, nunca pode ser ignorado e desconsiderado
A água é também
elemento da natureza importante para cultura e religiosidade de muitos povos no
mundo inteiro. Esperamos que os interesses mercantilistas das grandes empresas
não ofusque esse fato que permeia a relação dos povos e das culturas com a água
desde a antiguidade até os dias de hoje.
Na história o
Velho Testamento da Bíblia Sagrada, o livro de Gêneses diz: “no início o Espírito de Deus andava sobre as
águas”. No Novo Testamento outro fato importante citado foi o batismo de
Jesus Cristos, por João Batista nas águas do Rio Jordão. As narrativas bíblicas
estão repletas de fatos e acontecimentos relacionados à água. Até hoje muitas
igrejas cristã realizam batismo mergulhando o indivíduo na água.
Aqui no
Brasil os índios Javaés e Carajás que habitam na Ilha do Bananal na divisa de
Tocantins, Goiás e Mato Grosso afirmam que sua origem aconteceu no fundo do
lendário rio Araguaia. O Povo Kayapó que vivem nos estados de Mato Grosso e
Pará, dizem que os primeiros Kayapós foram criados numa casa dentro da água,
por isso se auto denominam Mebengôkré.
O povo Apinajé do Estado de Tocantins encerram os cerimoniais de posse de
caciques com banhos rituais em ribeirões. Nas celebrações do Pàrkapê, no momento
da chegada das Toras no pátio da aldeia, as mulheres Apinajé levam bacias e
cabaças com água para lavar as toras e os participantes beberem. Segundo a
mitologia do povo Apinajé, O sol e lua jogaram cabaças na água, que se
transformaram em pessoas dando origem aos primeiros Apinajé. Enfim os mitos de origem, e de existência de
muitos povos indígenas estão vinculados à água. Mitologia a parte, a ciência
também afirma que as primeiras formas de Vida surgiram na água.
Os rios são
partes dos modos de vida dos povos indígenas e comunidades ribeirinhas, especialmente
na Amazônia, Cerrado e Pantanal. Nessas regiões o relacionamento diário com a
água acontece na navegação, nas pescarias ou num simples passeio nos rios,
lagos e ribeirões. Os gestos de tirar a roupa e mergulhar na água constituem se
Ritos que demostram um relacionamento recíproco e amigável com a água. “Você me limpa e purifica, que cuidarei de
Você”. Seja como for, o contato com a água para lavar e higienizar o corpo,
ou como diversão é sempre uma necessidade para o indivíduo e uma terapia para
alma. O fato é que todos gostamos de mergulhar em águas puras e cristalinas
para se refrescar do calor. Existem ainda algumas fontes de águas que contém substâncias e minerais importantes para curar algumas enfermidades.
Por essa razão
estamos sempre alertas defendendo nossos territórios, formado por florestas,
campos, lagos, rios, ribeirões, nascentes e aquíferos, espaços que estão sempre
interligados entre si, para sustentar e manter os cursos d’água duradouros,
permanentes e vivos para presentes e futuras gerações.
Terra
Indígena Apinajé, 09 de março de 2018
Associação União das Aldeias
Apinajé-Pempxà
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