30 de jan. de 2017

DIREITO INDÍGENA

Índios e direitos agredidos

Inserido por: Administrador em 30/01/2017.
Fonte da notícia: Por Dalmo de Abreu Dallari, jurista, para a Comissão Pró-Índio de São Paulo


Dalmo Dallari na TI Tenondé Porã (Foto: Carlos Penteado/CPI-SP)

Fatos extremamente reprováveis ocorreram ultimamente na ordem jurídica brasileira, ameaçando direitos proclamados e assegurados pela Constituição, e, ao mesmo tempo, ofendendo disposições de normas constitucionais quanto ao sistema normativo e às competências das autoridades e dos órgãos públicos federais. E mais surpreendente ainda foram os acontecimentos porque o ator principal dessa confusão jurídica, pelo menos o responsável ostensivo, foi o Ministro da Justiça, autor de um excelente e prestigioso comentário da Constituição de 1988.

As questões acima referidas afetam os direitos dos índios sobre suas terras, direitos fundamentais que são expressa e claramente estabelecidos na Constituição, sendo oportuno relembrar aqui alguns desses dispositivos, para que fique bem evidente a confusão jurídica desencadeada, e pouco depois alterada e aparentemente corrigida, em decorrência de forte reação  e de várias denúncias que a ela se opuseram. O ponto básico é o direito dos índios às suas terras consagrado no artigo 231 da Constituição, segundo o qual  são reconhecidos aos índios « os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam ». E para ampla garantia desse direito foram acrescentados vários parágrafos ao artigo 231, dispondo o parágrafo 4° que « as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis ». Reforçando ainda mais esses dispositivos, o parágrafo 6° do mesmo artigo 231 dispôs que « são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo ».

Apesar da clareza desses dispositivos constitucionais, ocorreram e continuam ocorrendo muitas invasões e  tentativas de invasão das terras indígenas, visando o apossamento ilegal das terras e a usurpação das riquezas nelas existentes. Os invasores e usurpadores são, principalmente, pessoas e grupos ligados ao agronegócio, à retirada de madeira das florestas e às atividades de mineração, além de outros. Índios e comunidades indígenas foram expulsos de suas terras, por meios violentos, tendo havido mesmo a matança de índios além da expulsão de suas terras e da usurpação de suas riquezas. Prevendo que isso fosse acontecer, pois já havia muito precedentes, e buscando dar maior garantia aos direitos dos índios, o Constituinte de 1988, visando assegurar efetivamente esses direitos em toda a sua amplitude, estabeleceu com bastante ênfase, no artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias : « A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição ». Como é evidente, a demarcação das terras indígenas é uma obrigação constitucional do Governo Federal e deveria ter sido concluída até cinco anos a partir da promulgação da Constituição, que ocorreu em 5 de Agosto de 1988 e até agora só foi feita a demarcação de pouco mais da metade das terras indígenas.

Esse retardamento é devido, em grande parte, à enorme deficiência dos meios atribuídos aos órgãos encarregados da demarcação, o que caracteriza uma omissão intencional dos Poderes Legislativo e Executivo da União no cumprimento de uma obrigação constitucional. Essa omissão decorre da pressão exercida por interesses poderosos que praticaram, estão praticando ou pretendem praticar as invasões de terras indígenas. Assim, decorridos quase trinta anos da promulgação da Constituição os invasores de terras indígenas procuram impedir ou retardar ao máximo as demarcações, para que possam alegar que não se sabe onde começa e termina uma área indígena, tentando justificar as invasões com os argumentos de que estavam de boa fé e não cometeram ilegalidade, pois não podiam saber que estavam entrando numa terra indígena.

E aqui vêm os fatos muito reprováveis acima referidos, que se ligam à tentativa de interferir nas demarcações e mesmo de alterar as que já foram feitas e regularmente concluídas pelos órgãos e pelas autoridades competentes obedecendo os procedimentos legais. Para dar efetividade ao processo de demarcação previsto na Constituição foram fixadas regras precisas, quanto às competências e aos procedimentos , na Lei n° 6001, de 9 de Dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), na qual se estabelece expressamente, no artigo 19, que as terras indígenas serão demarcadas « por inciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio » (FUNAI), dispondo o parágrafo 1° desse mesmo artigo que a demarcação assim efetuada « será homologada pelo Presidente da República ». Posteriormente, pelo decreto presidencial n°1775, de 8 de Janeiro de 1996, foi expressamente estabelecido no artigo 1° que « as terras indígenas serão demonstrativamente demarcadas por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, a FUNAI, que, além de considerar a ocupação ostensiva e diversificada das áreas por comunidades indígenas para os objetivos necessários à sua sobrevivência, « fundamentará sua decisão em trabalhos desenvolvidos por antropólogos de qualificação reconhecida ». No caso de terem sido formalmente apresentados à FUNAI alguns questionamentos sobre aspectos particulares da demarcação de uma área o processo demarcatório será encaminhado ao Ministério da Justiça, para que examine as objeções e sugestões. Feito esse exame o Ministro da Justiça deverá declarar encerrada a demarcação ou então, se entender que existe consistência em algum questionamento, poderá devolver o processo à FUNAI para que faça as correções necessárias.  

Indo muito além de suas atribuições legais, o Ministro da Justiça publicou, em 14 de Janeiro de 2017, a Portaria n° 68, criando no âmbito daquele Ministério um Grupo Técnico Especializado para avaliação dos processos de demarcação de terra indígena. Como é evidente, estavam sendo afrontadas disposições da Lei n° 6001 e da Portaria presidencial n°1775 de 1996 que deram à FUNAI essas atribuições.  Mais grave ainda, pela Portaria 68 o Grupo Técnico Especializado tem o objetivo de assessorar o Ministro em assuntos que envolvam a demarcação de terras indígenas, considerando a ocupação concreta, imediata e ostensiva e, absurdamente, se as áreas são utilizadas para atividades  produtivas e ainda «a viabilidade econômica da ocupação ». Não há espaço para a preservação da cultura tradicional dos povos indígenas e para as atividades que asseguram sua subsistência. Coroando essa  absurda deformação do conceito de ocupação, minuciosamente desenvolvida com apoio de antropólogos, agrônomos e outros especialistas, a Portaria estabelecia que o Grupo Especial seria composto por representantes de quatro setores da Administração Pública, sendo um deles a FUNAI e os demais sem qualquer atribuição ou experiência relacionadas com os índios.

Uma particularidade muito grave, que não encontra justificativa, é que no Grupo Especial não foi incluído um representante do Conselho Nacional de Política Indigenista, órgão já existente no próprio Ministério da Justiça e obviamente especializado em assuntos indígenas. Evidentemente, o objetivo dessa Portaria estava bem longe do cuidado com a efetivação dos direitos tradicionais dos índios consagrados na Constituição e com a proteção desses direitos, pois sob aparência de cuidado com o direito estava sendo criada a possibilidade de interferência indevida. Isso é confirmado por disposições do artigo 4° que dão ao Grupo Especializado a competência para verificar, inclusive, prova de ocupação e do uso histórico das terras pelas comunidades indígenas e demonstração da viabilidade econômica da ocupação indígena, além de outros aspectos particulares, entre os quais « a delimitação de terra em extensão e qualidade suficiente para o desenvolvimento da comunidade ».

Do ponto de vista jurídico aquela Portaria era uma aberração, pelo conteúdo, mas, além disso, era absurda também por contrariar disposições constitucionais e legais expressas. Basta lembrar que nos termos do artigo 1° do Decreto n° 1775 de 1996 « as terras indígenas serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sobre orientação do órgão federal de assistência ao índio », que é a FUNAI. A esse respeito é oportuno lembrar aqui o ensinamento do eminente mestre do Direito Administrativo José Cretella Júnior. Num substancioso trabalho intitulado «Valor Jurídico da Portaria » o mestre registra o seguinte: « Como ato administrativo que é, a portaria não tem vida autônoma. Ao contrário, fundamenta-se sempre em lei, regulamento ou decreto anterior, sua base jurídica ». E conclui enfaticamente : « Onde a portaria fere de modo frontal a lei, o regulamento, o decreto, o intérprete concluirá, de imediato, por sua ilegalidade. Onde a portaria inova, criando, inaugurando, regime jurídico disciplinador de um instituto, é ilegal e, pois, suscetível de censura jurisdicional » (In Revista de Direito Administrativo – julhosetembro 1974). A publicação dessa desastrada Portaria provocou indignada e intensa reação, pois, além da ilegalidade essas manifestações deixavam evidente o absurdo da marginalização da FUNAI.

Tentando amenizar as resistências o Ministro da Justiça publicou, no dia 19 de Janeiro de 2017, nova portaria, de número 80, revogando a Portaria 68, publicada apenas cinco dias antes. A nova portaria tem somente dois artigos. Pelo artigo 1° é reproduzido o que dispunha a Portaria n° 68 criando o Grupo Técnico Especializado e pelo artigo 2° é definida a composição do Grupo, nos mesmos termos da portaria anterior. Mas na Portaria 80 não são incluídas exigências como a prova de ocupação e uso histórico das terras, não havendo também qualquer referência à extensão das terras. Apesar das modificações tentando diminuir a aparência de iniciativa contrária aos direitos indígenas, a essência da nova portaria é a mesma da anterior, sobretudo pela exclusão da iniciativa e da orientação da FUNAI para o processo demarcatório, expressamente previstas no decreto n° 1775 de 1996, podendo-se concluir com absoluta segurança que a Portaria 80 é tão ilegal quanto a 68.

Por tudo o que foi exposto, é necessária e urgente uma demonstração de que o Brasil continua e continuará a ser um Estado Democrático de Direito. Para tanto, tendo em vista os desvios aqui demonstrados, o Ministro da Justiça deverá comprovar sua capacidade de resistir às pressões dos poderosos que desprezam a Constituição e os Direitos Humanos. Isso deverá ter como ponto de partida a imediata publicação de uma nova Portaria pelo Ministro da Justiça, revogando, pura e simplesmente, a ilegal e injusta Portaria 80, de 19 de Janeiro de 2017. Com isso estarão preservados os direitos fundamentais que a Constituição assegura aos índios, como seres humanos e brasileiros. Essa revogação é também necessária para preservação da imagem de jurista do Ministro Alexandre de Moraes, para comprovação da autenticidade de seu compromisso com o Direito e a Justiça.

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11 de jan. de 2017

CARTA AO PRESIDENTE DA FUNAI

Logo após o conflito ocorrido em dezembro de 2007 na aldeia Buriti Comprido, o Antropólogo Odair Giraldin escreveu a Carta abaixo ao presidente da FUNAI, na época Sr. Márcio Meira

*Odair Giraldin 
Aspecto da aldeia Buriti Comprido dois anos após o conflito. (foto: Maurício Wilke. Jul. de 2009)
            Desde o início de meu doutorado, em 1994, venho estudando o povo Apinajé. Visitei-os em 1995 pela primeira vez, tendo feito trabalho de campo intensivo nos anos de 1996 a 1999.

          Quando cheguei à área pela primeira vez, estava ocorrendo o final do processo de retirada dos últimos posseiros, dez anos depois da demarcação. Este processo somente foi concluído por volta de 1997.

          Neste período, existiam as aldeias São José, Patizal e Cocalinho, na parte oeste da T.I. Apinajé, e as aldeias Mariazinha, Riachinho, Bonito e Botica, na porção leste, próximo do rio Tocantins.

       A parte Norte e Leste do território eram (e ainda são) as fronteiras mais vulneráveis daquela T.I. Pelo Leste, os pescadores e caçadores invadem o território pelo Rio Tocantins; pelo Norte, caçadores e madeireiros invadem para caçar e retirar madeira nas matas ciliares nas margens do Rio Tocantins e dos Ribeirões Pekôb São Martins e Botica. Além de retirarem também o bacuri e a fava-d´anta, nesta parte Norte os fazendeiros dos municípios de Maurilândia e São Bento invadem o território com rebanhos de gado.

      Por volta de 1997, com o fim da retirada dos últimos posseiros a AER- Administração Regional de Araguaína montou dois Postos de Vigilância na região Norte: Veredão, nas margens da Rodovia que liga São Bento a Araguatins, na margem Sul do Ribeirão São Martins, e no Pontal, próximo à cidade de Maurilândia. Havia à disposição dos postos apenas um funcionário, equipado com uma viatura Toyota e muita disposição.
Posto de Vigilância Pontal (desativado pela FUNAI) localizado na divisa Norte da T.I. Apinajé. (foto: Maurício Wilke. Jul. 2009)
          Existem exatamente três subgrupos dos Apinajé. O grupo da antiga aldeia Cocal; os da antiga aldeia Bacaba; e os da antiga Botica ou Gato Preto. Nos anos 40 ou 50, uma epidemia levou ao abandono da aldeia Cocal, com seus integrantes reunindo-se, parte no Gato Preto, e parte na Bacaba. Com outra epidemia no Gato Preto, esta aldeia se desfez e seus moradores mudaram-se, parte para Bacaba, e parte para Botica e, desta, para a aldeia Mariazinha.  

       Entre os moradores do Gato Preto que foram para Bacaba, estava a menina Irepxi, também conhecida como Maria Barbosa. No processo de demarcação, ela liderou seu grupo familiar para reocupar a região da antiga Cocal e fundaram a aldeia Cocalinho, próximo ao Ribeirão São Bento, nas proximidades do povoado de Lagoa de São Bento, hoje município de São Bento do Tocantins. Nos conflitos que se seguiram à luta pelo território, um fazendeiro de Araguatins, chamado João de Deus com um grupo de homens armados, invadiram a aldeia Cocalinho e, sob ameaça de armas de fogo, expulsaram seus moradores que foram jogados às margens da rodovia BR 230 (transamazônica) próximo à aldeia São José. No mesmo processo de demarcação, um genro de Irepxi, Valdemar, foi morto pela Polícia militar de Goiás dentro da Delegacia de Tocantinópolis, sendo que quatro outros Apinajé, Romão, Vicente, Sotero e Clementino ficaram feridos à bala.


         Com a demarcação concluída, o grupo dos descendentes da antiga aldeia Cocal (Maria Barbosa, Sebastião, Domingos, Maricota e Joanita), voltaram para a região e reergueram a aldeia Cocalinho. Por desavenças internas, uma parte do grupo retornou para São José, permanecendo na aldeia Cocalinho apenas Sebastião e Domingos.

          No ano 2002 a família da falecida Irepxi, Maria Barbosa, liderada por ela e por Pẽpxà (Augustinho) fundou a aldeia Buriti Comprido, nas margens do Ribeirão São Martinho e retornou para seu antigo território. Lá Augustinho e Maria Barbosa faleceram. Ela foi sepultada no cemitério da aldeia Buriti Comprido.

 As relações dos Apinajé com a população regional sempre foi assimétrica. Os regionais não convivem respeitosamente com os indígenas. Presenciei uma cena em que estavam homens da aldeia Cocalinho passando pela casa de um morador, Sr. Nezinho, então vivendo dentro da área e aguardando indenização para realizar a desocupação. Este perguntou a um indígena qual era o nome da madeira da qual se fazia o arco. O rapaz, em sua língua, perguntou a um companheiro como se chamava aquela madeira em português.  Sr. Nezinho interrompeu o diálogo dizendo: “Eh, cabloco! Fale língua de gente!!!”.

  Este Sr. Nezinho é pai de dois rapazes que entraram na aldeia Buriti Comprido no dia 15 de dezembro de 2007. Um deles, Roni, sobreviveu dirigindo o trator. Outro, Silveira, morreu na aldeia.

   Apesar das relações assimétricas, a população Apinajé jamais em sua história de contato havia matado algum kupẽ (não-indígena) dentro de suas aldeias. Consultei a documentação histórica desde o século XVIII, que tive a oportunidade de estudar durante o meu doutorado, nunca apresentaram ações dos Apinajé matando brancos. Uma única memória da população refere-se à morte de capangas de um dos coronéis da região que se envolveram em disputas políticas pelo poder na então Boa Vista (atual Tocantinópolis). Memórias de tropeiros da região, que faziam transporte de mercadorias entre Tocantinópolis e Araguatins, nas décadas de 1930 até anos 1960, dão conta das relações amigáveis entre eles e os Apinajé, pois a estrada entre as duas localidades passava pela aldeia Botica.

  Pois bem, mas no dia 15 de dezembro de 2007 aconteceu o primeiro episódio, que passo a descrever. Estive na aldeia São José entre os dias 18 e 21 de dezembro de 2007 prestando solidariedade e tentando entender o que havia ocorrido.
Trevo da BR 230 próximo à aldeia Buriti Comprido; T.I. Apinajé à direita. (foto: Antonio Veríssimo. Abr. 2015)
Quando da campanha para a eleição do atual prefeito, Sr. Messias, à prefeitura de Cachoeirinha, ele teria prometido aos Apinajé da aldeia Cocalinho que, se caso fosse eleito, mandaria cascalhar a estrada, faria uma ponte no Ribeirão dos Caboclos e levaria energia elétrica até a aldeia.

 Após a posse, as promessas não foram cumpridas. Atendendo pedidos dos indígenas a prefeitura mandou à aldeia um trator com carreta para transportar folhas de babaçu para serem utilizadas na cobertura de casas. Os Apinajé despacharam os dois trabalhadores que estavam com o trator e retiveram a máquina na aldeia como uma forma de forçar a negociação para o cumprimento das promessas feitas pelo prefeito.

Depois de quinze dias foi que um funcionário da prefeitura foi até a aldeia Cocalinho para negociar. O cacique estava em Tocantinópolis numa reunião sobre Saúde. O vice-cacique recebeu o funcionário, mas não pode decidir nada.

Na quarta-feira, dia 12/12/2007, o prefeito esteve na aldeia Cocalinho juntamente com vários homens, alguns deles armados; como foi o caso de um deles, chamado Silveira. Na aldeia estavam apenas algumas mulheres e crianças, pois a maioria dos homens e mulheres estava coletando bacuri ou pescando. O cacique foi pressionado a decidir sozinho pela devolução do trator, porém afirmou que precisava da presença de todos da aldeia para poderem decidir, uma vez que toda decisão é fruto do consenso coletivo e não da vontade do indivíduo que esta na chefia. Eles se reuniram no prédio da escola e esperaram pela volta dos que estavam fora da aldeia. Como estava demorando, o prefeito saiu sem resolver nada, nem marcando nova data para outra reunião.

Na sexta-feira um morador de Cachoeirinha, de nome Jackson, teria chegado na aldeia e avisado os moradores que o prefeito estava preparando um ataque na aldeia para pegar o trator e que ele estava ali para lutar ao lado dos Panhi. Estes não acreditaram nas palavras de Jackson e pediram que ele fosse embora.

Para comemorar o encerramento do ano letivo e o início da construção da nova Escola da nova aldeia Buriti Comprido, no sábado, dia 15/12, os funcionários (professores e agentes de saúde) cotizaram o valor de R$30,00 cada um e compraram carne e refrigerantes. Convidaram amigos, conhecidos e políticos da cidade de São Bento, como o Vereador Toti para a Celebração. Convidaram também seus familiares e parentes da aldeia Cocalinho para a festa e uma partida de futebol. Estes fretaram uma camioneta de São Bento para leva-los até Buriti Comprido. Mas alguns moradores de Cocalinho levaram o trator, sem a carreta.

Pela manhã, o indígena Alexandre, animou a festa com cantos de maracá no pátio. Logo depois do almoço, diversos convidados kupẽ se retiraram, incluindo o Vereador Toti.

Por volta de 15h00 estavam os jogadores no centro do campo “casando” dinheiro para iniciar o jogo, pois iriam fazer uma partida apostada. Nisso entrou um carro na aldeia e se dirigiu ao trator. As crianças correram em direção ao carro, como de costume. Viram então que os homens estavam encapuzados e elas começaram a gritar: “bandido, é bandido!!!. Alguns traziam a cabeça ocultada pelo uso de camisetas enroladas, outros usam capuzes pretos. Um dos ocupantes do carro desceu e correu em direção ao trator. Os demais desceram e começaram a disparar tiros para o alto. Quando foi dada a partida no trator, alguns homens correram para tentar conter o mesmo. Este deu partida e começou a disparar um revolver em direção aos homens, atingido um deles de raspão no braço.

Se a intenção dos ocupantes do veículo era que todos fugissem com os disparos, isso não aconteceu. Crianças correram para o mato, mas homens e mulheres enfrentaram os atacantes. Num momento em que a munição de um terminou, correram até ele e o dominaram. Enquanto isso os demais ocupantes do automóvel voltaram para o carro, mas foram alcançados pelas pessoas e impedidos de atirar, acabaram dominados também. Com os quatro homens foram encontrados cinco armas; três revólveres, uma cartucheira 20 e um rifle calibre 22.

Após o tiroteio, (e reação da comunidade) quando os capuzes foram retirados, descobriu-se que eram todas pessoas conhecidas dos Apinajé. Alfredo e Gutierrez eram funcionários da prefeitura de Cachoeirinha; Jonas era secretário da mesma prefeitura. O quarto homem era Silveira, irmão de Roni, que conseguiu escapar com o trator, e ambos filhos do Sr. Nezinho, antigo posseiro da área Apinajé e morador na cidade de São Bento. Roni e Silveira são irmãos da enfermeira que trabalhava ha alguns anos na aldeia Patizal.

 Diversos fatores contribuíram para a ocorrência. Primeiro foi a atitude do prefeito em não cumprir o prometido. Posso dizer que, pelas palavras que ouvi deles nestes dias que estive na aldeia São José, os Apinajé entendem que o prefeito exerce uma liderança que é interpretada pelo signo da chefia da aldeia. Se um cacique se propõe a fazer algo pela comunidade, ele deve cumprir o que falou. Ele deve ser generoso a ponto de distribuir bens para atender os interesses da comunidade. Os Apinajé esperam isso dos Prefeitos. Como o mandatário de Cachoeirinha não cumpria o que prometeu, eles então partiram para a pressão que é comum na região, o aprisionamento de algum bem material para forçar a negociação e a solução.
Invasões na T.I. Apinajé na região do Pontal (foto; Maurício Wilke. Jul. de 2009)
Faltou a FUNAI cumprir dois quesitos fundamentais. Primeiro fazer a vigilância do território. Com a desativação dos Postos de Vigilância do Veredão e Pontal, o território ficou vulnerável e os kupẽ não mais sentiram dificuldade alguma em adentrar o território. Segundo porque a FUNAI deveria ter intermediado eficazmente o conflito e não ter deixado que o próprio prefeito ou seus funcionários fosse até a aldeia, que sem conhecerem minimamente as normas culturais dos Apinajé, não teriam capacidade para conduzir com habilidade uma negociação.

Com este episódio os Apinajé estão amedrontados e se sentindo ameaçados. Com a remoção daquela população para a aldeia São José, eles vivem uma sensação de desterro. São refugiados dentro de seu próprio território. Sem proteção não terão condições de voltarem para suas casas. Viver na aldeia São José poderá gerar problemas sérios, pois lá não possuem roças e terão que viver de favores recebendo cestas báo que viver de favores recebendo cestas bilidade a negociaç conflito e nirassol bloquearam a estrada de Tocantindeia para pegarsicas durante um ano.

No dia 08 de dezembro devido a brigas durante uma festa, houve, na aldeia Botica, a morte de um kupẽ que era casado com uma Apinajé. Isso colocou a população das aldeias do PIN Mariazinha em situação de insegurança também e dificuldade no relacionamento com as cidades de Tocantinópolis e Maurilândia.
Bacuri é uma das espécies de frutas encontradas na região das aldeias Cocalinho e Buriti Comprido. (foto: Antonio Veríssimo. dez. de 2012)
Dessa forma, penso que a FUNAI precisa cumprir seu papel de proteção ao território reativando os Postos do Veredão e Pontal e criando outro no entroncamento de Luzinópolis, outro no entroncamento da Prata, outro na entrada da T.I. no sentido Tocantinópolis a Maurilândia e outro na entrada da T.I., no sentido Maurilândia a Tocantinópolis, equipando-os adequadamente com veículos, funcionários e comunicação. Somente assim eles poderão voltar a ter tranqüilidade para reocuparem suas antigas aldeias e terem seu território preservado.


Esta medida se faz urgente uma vez que a aldeia Cocalinho teve suas casas incendiadas pelos não-indígenas em vingança. A reocupação desta região pelos Apinajé somente será possível com a presença diuturna de segurança armada. Vale lembrar que a região do Cocalinho é cobiçada pelos não-índios pela grande quantidade de bacuri existente na região e pela fertilidade de suas terras.

Ao fazer este relato e estas sugestões acredito estar cumprindo com meu papel de antropólogo auxiliando a FUNAI e aos Apinajé para tentar solucionar esta situação grave pela qual passam aquele povo atualmente.

* Doutor em Antropologia (Universidade de Campinas-UNICAMP)
   Coordenador do Núcleo de Estudos e Assuntos Indígenas – NEAI
   Prof. da Universidade Federal do Tocantins – UFT



Dezembro de 2007.