2 de mar. de 2018

MPF

NOTA TÉCNICA

O Ministério Público Federal, Procuradoria da República no Estado do Tocantins, pelo Ofício da Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Índios e Comunidades Tradicionais, expede a presente NOTA TÉCNICA em relação ao Projeto de Lei nº 194/2017, em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado do Tocantins, de autoria do Deputado José Bonifácio, que visa alterar a Lei Estadual nº 1.959/2008, que dispõe sobre a proibição de queima, derrubada e do uso predatório das palmeiras do coco de babaçu. A Lei Estadual nº 1.959/2008 tem a seguinte redação:

Lei nº 1.959 de 14/08/2008
Publicado no DOE em 15 agosto de 2008
Dispõe sobre a proibição da queima, derrubada e do uso predatório das palmeiras do coco de babaçu e adota outras providências.

O GOVERNADOR DO ESTADO DO TOCANTINS
Faço saber que a ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO TOCANTINS decreta e eu sanciono a   seguinte lei:
Art. 1º São proibidos a queima do coco babaçu, inteiro ou in natura, para qualquer finalidade, a derrubada e o uso predatório de suas palmeiras no Estado do Tocantins, vedadas ainda, as práticas que possam prejudicar a produtividade ou a vida do babaçu.
§ 1º É permitida a derrubada de palmeiras de coco babaçu no Estado do Tocantins:
I - se necessária a execução de obras, projetos ou serviços de utilidade pública ou de interesse social, assim declarado pelo Poder Público, sem prejuízo do licenciamento junto ao órgão ambiental competente;
II - com o objetivo de estimular a reprodução das palmeiras, aumentar a produção do coco ou facilitar a sua coleta;
III - nos casos de raleamento, obedecido o disposto no art. 3º desta lei.
§ 2º Para fins do disposto no inciso I do § 1º deste artigo, o órgão licenciador deve indicar as medidas de compensação ambiental a serem adotadas pelo responsável.
§ 3º O disposto neste artigo não se aplica ao carvão produzido da casca do coco de babaçu em caieira, pelas quebradeiras de coco e comunidades tradicionais.
Art. 2º As matas nativas constituídas por palmeiras de coco de babaçu, em terras públicas ou devolutas são de livre uso e acesso das populações agroextrativistas, desde que as explorem em regime de economia familiar e comunitário, conforme os costumes de cada região.
Parágrafo único. Em terras privadas, a exploração é condicionada a celebração de termo de acordo entre as associações regularmente constituídas de quebradeiras de coco de babaçu ou de comunidades tradicionais e os respectivos proprietários.
Art. 3º É permitido o trabalho de raleamento nas áreas de incidência de palmeiras de coco de babaçu, desde que obedecidos os seguintes critérios:
I - sacrifício prioritário de palmeiras fêmeas senis;
II - manutenção de, no mínimo, oitenta palmeiras produtivas e oitenta palmeiras jovens em cada hectare desmatado, obedecendo ao espaçamento máximo 10m x 10m;
III - utilização de meios adequados de desbaste, que não comprometam a vegetação remanescente;
IV - vise melhorar a produtividade e facilitar o acesso aos babaçuais, sendo permitido o manejo da vegetação associada.
Parágrafo único. O trabalho de raleamento é condicionado à autorização do órgão ambiental competente.
Art. 4º Compete ao Instituto Natureza do Tocantins - NATURATINS e à Companhia Independente de Polícia Ambiental - CIPAMA a execução e fiscalização do cumprimento desta lei, podendo para tanto, celebrar convênios com órgãos federais, municipais e com a sociedade civil organizada.
Art. 5º O infrator desta lei, independentemente das sanções civis, penais e administrativas previstas e da obrigação de reparação do dano causado, deve incorrer no pagamento de multa:
I - no valor de R$ 100,00 a R$ 500,00 por unidade, quilo, metro de carvão vegetal ou metro cúbico, para aquele que receber ou adquirir, vender ou expor à venda, transportar ou que tenha, para fins comerciais ou industriais, carvão de coco de babaçu inteiro ou in natura;
II - no valor de R$ 1.000,00 a R$ 5.000,00, para aquele que conduzir palmito extraído de palmeira de coco de babaçu, ressalvada as condições mencionadas no § 1º do art. 1º desta lei.
Parágrafo único. A inobservância das demais infrações não tipificadas nesta lei, sujeita ao infrator às sanções previstas na legislação ambiental em vigor, em especial as previstas na Lei Estadual nº 771, de
7 de julho de 1995, e Decreto Federal nº 3.179, de 21 de setembro de 1999.
Art. 6º O produto da arrecadação da multa instituída nesta lei é recolhido ao Fundo Estadual do Meio
Ambiente e revertido para a recuperação de áreas de babaçuais e para o desenvolvimento de políticas públicas em favor das comunidades de quebradeiras de coco de babaçu e das comunidades tradicionais.
Art. 7º O Poder Executivo e suas autarquias ficam proibidos de conferir benefícios, sob qualquer instrumento, aos infratores desta lei, devendo constar estes em relação organizada pelo órgão ambiental competente.
Art. 8º Com o propósito de estimular a instalação de unidades industriais que visem o aproveitamento integral do coco de babaçu, é proibida a comercialização interestadual do coco de babaçu inteiro ou in natura.
Art. 9º A quebra do coco de babaçu em duas ou mais partes, processadas em qualquer ambiente, sem o aproveitamento do mesocarpo e da amêndoa, não justifica a carbonização das referidas partes, que assim, não são consideradas cascas para este efeito.
Art. 10. Ao Poder Executivo incumbe a elaboração de normas complementares que julgar necessárias ao fiel cumprimento desta lei.
Art. 11. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 12. É revogada a Lei nº 1.366, de 31 de dezembro de 2002.

Palácio Araguaia, em Palmas, aos 14 dias do mês de agosto de 2008; 187º da Independência, 120º da República e 20º do Estado.

MARCELO DE CARVALHO MIRANDA
Governador do Estado
MARY MARQUES DE LIMA
Secretária-Chefe da Casa Civil

Já o projeto apresentado atinge o cerne da regulamentação, que é a salvaguarda da matéria-prima utilizada pelas quebradeiras, com a seguinte redação:

PROJETO DE LEI Nº 194/2017
Altera a Lei nº 1.959, de 14 de agosto de 2008, que dispõe sobre a proibição da queima, derrubada e uso predatório das palmeiras do coco-babaçu e adota outras providências.
A Assembleia Legislativa do Estado do Tocantins decreta:
Art. 1º. Fica alterado o art. 1º da Lei nº 1.959, de 14 de agosto de 2008, que passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 1º. São proibidos a derrubada e o uso predatório das palmeiras de babaçu no Estado do Tocantins, vedadas, ainda, as práticas que possam prejudicar a produtividade ou a vida das palmeiras do babaçu.
Art. 2º. São revogados os artigos. 8º e 9º da Lei nº 1.959, de 14 de agosto de 2008.
Art. 3º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Justificativa:

A presente proposta justifica-se pelo fato de que o coco babaçu vem apodrecendo debaixo das palmeiras em virtude do baixo preço da amêndoa pago pelos compradores. Além disso, a prática da queima vem sendo feita ilegalmente para a fabricação de carvão.

Sala das Sessões, em 19 de Outubro de 2017

JOSÉ BONIFÁCIO
Deputado Estadual

Após tomar conhecimento da existência do referido projeto de lei, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) procurou o Ministério Público Federal no dia 06.12.2017, manifestando sua preocupação com o referido projeto, alertando para as seguintes circunstâncias:
1- A partir do momento que forem permitidas a comercialização e a queima do coco babaçu inteiro, os proprietários de imóveis rurais e outros intermediários, notadamente vendedores de carvão, coletarão os cocos inteiros e não os disponibilizarão para as quebradeiras;
2- Ao contrário do ocorrido quando da aprovação da lei original, e também do que determina a Convenção 169 da OIT, as quebradeiras não foram ouvidas em momento algum sobre o referido Projeto de Lei, tendo dele tomado conhecimento por acaso;
3- O artigo 112 da Constituição do Estado do Tocantins estabelece que “Art. 112. É obrigatória a preservação das áreas de vegetação natural e de produção de frutos nativos, especialmente de babaçu, buriti, pequi, jatobá, araticum e de outros indispensáveis à sobrevivência da fauna e das populações que deles se utilizam.
Veja-se que o objetivo da preservação é garantir a sobrevivência das populações que deles se utilizam. Pois bem. Trazida a questão ao Ministério Público Federal, faço as seguintes considerações:
1- Inicialmente, afirmo a atribuição do Ministério Público Federal de atuar em defesa das quebradeiras de coco babaçu, atribuição esta pacificada pelo Enunciado nº 19 da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que trata de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, nos seguintes termos: ENUNCIADO nº 19: “O MPF, dentre outros legitimados, tem atribuição para atuar judicial e extrajudicialmente em casos envolvendo direitos de quilombolas e demais comunidades tradicionais, sendo a competência jurisdicional da justiça federal. Tal atribuição se funda no artigo 6º, inciso VII, alínea “c”, e artigo 5º, inciso III, alínea “c”, da Lei Complementar nº 75/93, no fato de que a tutela de tais interesses corresponde à proteção e promoção do patrimônio cultural nacional (artigos 215 e 216 da Constituição); envolve políticas públicas federais, bem como o cumprimento dos tratados internacionais de direitos humanos, notadamente da Convenção nº 169 da OIT”.
2- Também não há dúvida quanto ao fato de as quebradeiras de coco babaçu serem reconhecidas como comunidades tradicionais, pela sua própria autoafirmação, ainda corroborada por sua participação no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, instituído pelo Decreto nº 8.750/2016.
3- Firmadas essas premissas, passo à análise do projeto questionado, ciente de que não foi ainda aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado do Tocantins, não possuindo portanto implicação concreta na vida das quebradeiras de coco babaçu. Sem querer interferir no âmbito de matéria interna corporis da Casa de Leis, cumpre-me externar a posição do Ministério Público Federal, Procuradoria da República no Estado do Tocantins, em relação ao Projeto de Lei nº 194/2017:
3.1- Tenho que o Projeto já nasce eivado de ilegalidade, uma vez não observado o artigo 6º da Convenção 169 da OIT, internalizada no Direito brasileiro pelo Decreto nº 5051/2004, que prevê:

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
Uma vez que o Projeto visa estabelecer medida legislativa suscetível de afetar diretamente as quebradeiras de coco babaçu, não poderia sequer ser proposto sem consultar-lhes previamente.
3.2- A proposta apresentada padece de inconstitucionalidade flagrante. Com efeito, a Constituição Federal criou um sistema de proteção ao patrimônio cultural brasileiro, e prevê em seu artigo 216:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;

Já o parágrafo primeiro desse mesmo artigo determina:

§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Ora, se as formas de criar, fazer e viver (coleta, quebra, beneficiamento, utilização do coco babaçu) dos grupos formadores da sociedade brasileira (as quebradeiras de coco babaçu) constituem patrimônio cultural brasileiro e é determinado ao Poder Público sua proteção e preservação, não pode o Estado do Tocantins instituir lei que ameace de morte a existência da comunidade tradicional. Nesse sentido, o Ministério Público Federal aguarda que o Projeto de Lei nº 194/2017 seja definitivamente arquivado na Assembleia Legislativa do Estado do Tocantins.

Palmas - TO, 08 de dezembro de 2017.

Álvaro Lotufo Manzano
Procurador da República

Nenhum comentário:

Postar um comentário