Situação de calamidade pública: povos Canela do Maranhão em situação de risco
17/12/2014
Centro de Trabalho Indigenista
Nas aldeias Escalvado e Porquinhos,
entre os dias 25/11 e 16/12, 19 indígenas morreram e mais de 10% da
população, 310 pessoas, está internada.
A quem cabe a responsabilidade desta situação? Quem deve ser processado por esse homicídio doloso?
Por que o provável surto do
vírus A/H1N1, comumente conhecido como gripe suína, e coqueluche fugiu
ao controle da SESAI, Ministério da Saúde?
Estes não são índios isolados,
sem imunidades às nossas doenças e que morriam como moscas quando do
contato. São povos com mais de 250 anos de contato com a sociedade
nacional, que já passaram pelas epidemias de sarampo e tuberculose.
Convivem, como o povo do sertão, com as mazelas da região. Para se
chegar a um quadro deste estão abandonados há muito.
A exiguidade territorial que os
obriga a viver confinados em praticamente uma aldeia na TI Kanela, onde
vivem quase 2.100 pessoas e 800 pessoas na TI Porquinhos, contribuiu
para que o vírus se espalhasse rapidamente. O que o Ministério Público
vai fazer?
Para saber:
Um provável surto do vírus Influenza
A/H1N1, comumente conhecida como gripe suína, e de Coqueluche está
acometendo os povos Apanjekrá-Canela e Ramkokamekrá – Canela, da TI
Porquinhos e TI Kanela no Maranhão, municípios de Fernando Falcão e
Barra do Corda. Os primeiros casos da gripe ocorreram em 26 de novembro
na aldeia Escalvado – TI Kanela, com o óbito de duas crianças e
internação de mais três crianças nos hospitais de Barra do Corda e
Imperatriz. Uma semana depois, no dia 03 de dezembro, outros 27 casos
foram identificados na aldeia Porquinhos – TI Porquinhos.
O Distrito Sanitário Especial Indígena
do Maranhão (DSEI-MA) enviou uma equipe médica, juntamente com
profissionais da Vigilância Epidemiológica e do Laboratório Central de
Saúde Pública do Estado do Maranhão para prestar o devido serviço de
atendimento à saúde indígena e realização de exames conclusivos para
confirmação do diagnóstico sob suspeita.
Mas, atenta ao drástico quadro de saúde
dos povos Canela, a FUNAI - Coordenação Regional Araguaia e Tocantins,
alertada pelo Conselho de Direitos Humanos do Estado do Maranhão e em
diálogo com lideranças indígenas, servidores locais e com a coordenadora
do Polo Base de Saúde de Barra do Corda, mobilizou equipe técnica
própria para averiguar a grave situação de saúde. A equipe da FUNAI
concluiu que as informações repassadas pela coordenação do Pólo Base de
Saúde estavam em completo descompasso com o quadro real encontrado, isto
é:
i) a situação não estava sob controle;
ii) a equipe médica multidisciplinar
formada por um médico, duas enfermeiras e dois técnicos de enfermagem é
insuficiente para o atendimento necessário;
iii) a estrutura de atendimento é precária, dispondo, por exemplo, de apenas um veículo para remoção dos enfermos;
iv) que os indígenas internados no Pólo Base de Saúde de Barra do Corda eram alimentados apenas com um refeição por dia;
v) que a prevenção e vacinação dos
indígenas durante o corrente ano não foi realizada em razão do envio de
medicamentos com data vencida.
Na aldeia Escalvado – TI Kanela, os
sintomas do vírus se fazem presentes em crianças de 450 famílias. Já na
aldeia Porquinhos – TI Porquinhos, crianças de 56 famílias são alvo de
tratamento. A equipe médica local vem administrando medicamentos para o
combate aos sintomas. Contudo, os medicamentos, a infraestrutura para
atendimento e equipe técnica – que tem trabalhado à exaustão, fazendo
132 consultas por dia - não é suficiente para prestar o devido
atendimento ao conjunto dos enfermos. São necessários mais médicos,
técnicos de enfermagem, medicamentos, viaturas e medicamentos para
conter o cenário. Segundo os dados da saúde, vieram a óbito 09
indígenas, entre os dias 25 de novembro e 16 de dezembro, informação
esta considerada subestimada pelos Canela que apresentam o número de 19
indígenas falecidos nesse período. Além destes dados, 310 indígenas são
foco de tratamento.
A FUNAI por meio da sua Coordenação
Regional do Araguaia e Tocantins vem solicitando, em caráter de
urgência, o apoio do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de
Saúde Indígena – SESAI para fortalecer a equipe local e a estrutura de
atendimento, de modo a fazer frente ao gravíssimo quadro de saúde.
Para entender a crise:
Informações:
Os Apanjekrá e Ramkokamekrá vivem uma
situação semelhante em relação às condições do sistema de atendimento à
saúde, sob a responsabilidade do DSEI do Maranhão. Este DSEI compreende
dois complexos socioculturais e linguísticos completamente distintos: os
povos de língua Tupi - os Awá-Guajá, povo de recente contato, os
Urubu-kaapór e os Tenetehara, conhecidos como Guajajara, que representam
quase 80% desse total; e os falantes da língua Jê-Timbira,
representados no Maranhão pelos povos Krikati, Gavião, Krenjê, Apanjekrá
e Ramkokamenkrá.
O Polo-Base de referência dos Apanjekrá e
Ramkokamekrá está localizado no município de Barra do Corda, à 440 km
de São Luis do Maranhão, sede do Distrito Sanitário. No referido
Polo-Base é oferecido atendimento primário (município referência tipo
1), o quadro de profissionais conta com agentes indígenas de saúde/AIS;
agentes indígenas de saneamento básico/AISAM; técnicos de enfermagem;
enfermeiras, odontólogo, motoristas e técnicos administrativos, mas não
há médicos contratados.
A situação:
A Casa de Saúde Indígena – CASAI -
Apanjekrá está em péssimo estado e a Ramkokamekrá foi desativada. Nas
aldeias ficam permanentemente os AIS, o AISAM, sem formação continuada e
técnico de enfermagem. As farmácias/posto de saúde funcionam em prédios
velhos e sem nenhuma infraestrutura de atendimento. Situação esta que
será mote de solenidade a ser realizada - em meio à crise – para
inauguração de nova estrutura do posto de saúde da aldeia Escalvado pelo
chefe do DSEI-MA e Prefeito de Fernando Falcão. Mais do que uma piada
de mau gosto, trata-se de uma escancarada manobra política.
A precariedade dos postos de saúde estão
para além da infra estrutura. Os medicamentos existentes, nem todos
dentro dos prazos de validade, são principalmente analgésicos e
antibióticos. Não são fornecidos todos os medicamentos que os técnicos
julgam necessários e não há instrumentos cotidianos básicos para
suturas, medidas de pressão arterial, soro antiofídico, etc. E, não há
qualquer diálogo entre o sistema de atendimento à saúde do órgão oficial
responsável e o sistema de medicina tradicional dos Apanjekrá e
Ramkokamekrá, o que cria conflitos em relação aos tratamentos.
Histórico recente do descaso:
Em 2003, quando o órgão
responsável pela saúde indígena era a Fundação Nacional da Saúde –
FUNASA, foi firmado um Termo de Ajuste de Conduta/TAC entre a FUNASA e
os povos indígenas do Maranhão para a estruturação e melhoria do
atendimento à saúde.
Em 2008 o Ministério
Público esteve presente nas TIs Porquinhos e Kanela para a realização de
um levantamento da situação de saúde em diálogo com o cumprimento das
determinações do TAC – situação esta inalterada.
Em 2010 com a
reformulação da gestão da saúde indígena e criação da Secretaria
Especial de Saúde Indígena – SESAI, houve um sopro de esperança que logo
se dissipou. As comunidades de ambas as Terras Indígenas seguem
atestando a profunda insatisfação com o atendimento prestado e com a
manutenção de funcionários não desejados no quadro que, a despeito do
desempenho profissional contestado em razão do mal uso de viaturas e dos
recursos financeiros destinados para o serviço em questão, seguem
contemplados por contratos de trabalho vinculados aos convênios firmados
pelo Ministério da Saúde junto à Missão Evangélica Caiuá para o
atendimento de saúde a esses povos. A Missão Cauiá é vinculada à Igreja
Presbiteriana do Brasil, com sede em Dourado-MS e com representação em
São Luis. Desde novembro de 2011 a Missão tem a responsabilidade
administrativa de 17 dos 34 Distritos existentes, o que totaliza 62% dos
DSEIs do Brasil.
Em 2012, este descaso
histórico do atendimento oficial à saúde aos Apanjekrá-Canela e
Ramkokamekrá – Canela foi alvo de mobilização política das lideranças
que acionaram o Ministério Público Federal, via Procuradoria da
República no Maranhão, para protocolar denúncias sobre a drástica
situação de saúde desses povos atrelada ao completo sucateamento da
infra estrutura de atendimento e à atuação truculenta de profissionais
contratados. Esta articulação resultou numa reunião entre representantes
do MPF, DSEI-MA e lideranças Canela para encaminhar soluções concretas
para a melhoria da política de atendimento saúde, como: a oficialização
de novos representantes no Conselho Distrital de Saúde Indígena/CONDISI
para o controle social efetivo das ações prestadas pelo DSEI-MA, a
renovação dos quadros administrativos e técnicos, o pleno funcionamento
do Pólo-Base e CASAIs estruturadas e independentes para cada povo.
Desde então dois anos se passaram e o
sistema de atendimento à saúde aos Apanjekrá e Ramkokamekrá, antes ruim,
atingiu um nível drástico e calamitoso com o atual quadro de óbitos e
tratamento precário no presente contexto de surto de Influenza A/H1N1 –
situação esta resultante do contínuo descaso e negligencia da política
de saúde indígena executada junto a esses povos. Eis a pergunta:
Ministério Público, quem vai ser processado por homicídio doloso? O DSEI
– MA? A Missão Caiuá? O Ministério da Saúde?
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