30 de nov. de 2022

OPINIÃO

 FUNAI: 

"AQUELA QUE NÃO DEVE MORRER"

                                                                                                *Fernando Schiavini

Com a efetiva criação do Ministério dos Povos Originários, prometida pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, pergunta-se com frequência qual seria o destino da Fundação Nacional do Indio, a legendária FUNAI. Ela seria extinta ou se transformaria no braço executor das políticas públicas idealizadas pelo novo ministério?

A FUNAI foi criada em 1967 pela Lei 5.371 pelos governos militares, para substituir o SPI – Serviço de Proteção aos Índios, na função de “tutora” governamental dos povos indígenas. O SPI estava, então, afundado em escândalos sucessivos de malversação de verbas públicas, exploração das terras e da mão-de-obra indígena, além de facilitar a usurpação dos territórios dos povos originários.

Inicialmente comandada por militares, que tinham como objetivos estratégicos a integração nacional, o desenvolvimentismo patrimonial e a ocupação dos espaços “desertos”, principalmente da Amazônia, a FUNAI foi o “para-raios” de uma intensa movimentação política envolvendo os povos indígenas, as “entidades alternativas” (hoje, as ONGs), o CIMI parte do corpo de indigenistas da própria FUNAI.

Ao herdar as funções de tutora, a FUNAI herdou, também, praticamente todo o quadro de funcionários do antigo SPI, amarrados, obviamente, aos seus vícios e conchavos, que haviam levado à extinção a própria autarquia. A FUNAI realizou, então, pela participação direta de indigenistas internos, contratados por concursos públicos sucessivos, de 1970 a 1979, de uma recuperação ética das ações da FUNAI. Muitos desses indigenistas tornaram-se aliados verdadeiros das comunidades indígenas e lutaram, junto aos líderes indígenas antigos, pelas suas terras, seus direitos e pelo reconhecimento da ancestralidade indígena. Todas as lideranças indígenas jovens atuais, presenciaram ou ouviram de seus pais, relatos sobre a participação de indigenistas da FUNAI no encaminhamento de seus problemas e reivindicações, principalmente de terras. Muitos deles, indigenistas e líderes indígenas, ainda vivem e podem testemunhar essa aliança.

Mesmo cometendo vícios do passado, calcados no paternalismo, assistencialismo e clientelismo, os povos indígenas fizeram uma forte aliança com a FUNAI, ao ponto deles próprios, em nenhum momento, jamais pedirem a sua extinção. É interessante rememorar que, em 2005, no primeiro mandato de Lula, em uma conferência nacional de lideranças indígenas em Brasília, a proposta da criação de um ministério para os povos indígenas foi colocada e rejeitada pelo plenário. As lideranças optaram por recomendar o reforço administrativo da FUNAI.

Desde meados da década de 1970, as ações dos indigenistas internos contavam com a colaboração das entidades da sociedade civil acima citadas e de alguns jornalistas, que pressionavam o poder público para mudanças na política indigenista então praticada pelos militares. O vice-versa também acontecia. Os indigenistas possibilitavam a entrada e atuação dessas entidades e de jornalistas nas Terras Indígenas, atuando muitas as vezes em conjunto eles. A bandeira desses entidades (e dos indigenistas combativos internos) era a “autodeterminação dos povos indígenas”.

Essa aliança, que funcionava de forma tácita e informal, transformou a política indigenista brasileira, eliminando da FUNAI, práticas internas (a maioria herdadas do SPI), como a remoção de povos indígenas para a implantação de obras públicas ou privadas; a prática da “atração” para o contato com povos em isolamento; o arrendamento de terras indígenas; os empreendimentos de exploração dos recursos naturais das TI em benefício do próprio órgão (serrarias, criação de gado bovino); a exploração de mão-de-obra indígena para extração de produtos da floresta, como castanha-do-Brasil, borracha, ouro e até peles de animais silvestres.

Os recursos auferidos com esses empreendimentos, além da cobrança de um “dízimo” da produção agrícola das aldeias, controladas pelos postos indígenas, eram enviados para a “Renda Indígena”, um fundo criado pelo SPI, que teria a finalidade de financiar ações nas próprias TIs., principalmente nas mais carentes de recursos naturais. Não eram poucas as desconfianças (já que as denúncias públicas eram proibidas pelo regime militar) de que esses recursos eram desviados para os bolsos dos dirigentes do órgão. A “renda indígena” da forma como funcionava também foi extinta.

Além de eliminar práticas lesivas às comunidades indígenas, a FUNAI instituiu outras práticas que as beneficiam diretamente, como a demarcação de terras indígenas em extensões suficientes para a manutenção física e cultural dos povos indígenas, conforme determina a Lei 6001, de 1973; demarcou milhões de hectares de terras indígenas; desenvolveu a “expertise” em licenciamentos ambientais para empreendimentos que afetam as TIs.; desenvolveu a nova política para povos isolados; apoiou a recuperação de recursos genéticos tradicionais de agricultura dos povos indígenas; desenvolveu conceitos e estratégias para construção de moradias e prédios públicos nas Tis., entre outras.

A aliança entre os indigenistas internos e as organizações da sociedade civil funcionou, esgarçando-se aos poucos, até a promulgação da Constituição de 1988. A partir daí cada seguimento tomou seu rumo. Não havia mais um inimigo comum a combater. A FUNAI continuou, no entanto, a ser acusada de antiquada, tutelar, que impedia os avanços dos direitos indígenas estabelecidos na Constituição de 88, o que era verdadeiro.

Pode-se dizer que, em um período de cerca de 20 anos (1967 a 1988), apesar de todos os vícios e equívocos, a FUNAI transformou-se, de uma instituição corrupta e exploradora, que defendia prioritariamente os interesses do estado nacional e de governos, em uma instituição que defendia os interesses dos povos indígenas. Talvez resida aí, em resumo, o grande apreço que os povos indígenas têm por ela.

No segundo mandato de Lula, integrantes de ONGs indigenistas resolveram ocupar a FUNAI, integrando-se aos seus quadros. Durante a administração que participaram, a FUNAI promoveu uma reforma administrativa, tentando adequá-la à nova realidade de “não tutora”; realizou concurso público para suprir parte das deficiências de servidores e, principalmente, retirou das aldeias os Postos Indígenas, localizando as representações locais nas cidades próximas às terras indígenas.

Finalmente, como todos sabemos, a FUNAI foi “capturada” por forças retrógadas instaladas no país pelo governo eleito em 2018, que vem tentando, de todas as formas, não somente destruir tudo o que foi alcançado, como transformar a instituição como algo que atue contra, e não a favor, dos povos indígenas. Nada, entretanto, que não dê para ser corrigido rapidamente. Afinal, não se apaga mais de 100 anos de história em tão pouco tempo, por mais aloprados que sejam os administradores.

Afinal, a pergunta que não quer calar: A FUNAI deve ser extinta ou permanecer ativa, agora como braço executor das políticas públicas formuladas pelo Ministério dos Povos Originários?

A ver:

1) A FUNAI continua nas mentes e corações das comunidades indígenas e da sociedade geral, mesmo com todas as tentativas de desacredita-la nos últimos anos;

2) A FUNAI foi instituída por uma lei e somente outra lei poderá extingui-la;

3) A FUNAI é uma fundação de direito privado e pode receber doações e subvenções de terceiros, inclusive internacionais;

4) a FUNAI possui mínima estrutura, capilaridade e experiência para executar ações em Terras Indígenas.

Sua estrutura administrativa, obviamente, terá que ser readequada para as novas funções que deverá receber, após a criação do Ministério dos Povos Indígenas, assim como o seu próprio nome deverá ser modificado, afinal, a palavra “índio” caiu em quase completo desuso.

É a minha modesta opinião.   

                                                       

                                                               *Fernando Schiavini é indigenista e escritor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário